sábado, 28 de dezembro de 2013

Etiqueta.

-- Ana Clara, você fica muito em casa, sai um pouco.
[...]
-- Ana Clara, fala com as pessoas, você não está interagindo.
[...]
-- Catso, você só sabe falar de política? Devia ter ficado em casa.
[...]

Balanço das metas da folga de natal.

Acabar a 3ª temporada de Downtown Abbey [check]
Terminar Estrela Distante, do Bolaño [em andamento]
Levar para SP: "A história das internacionais", "A revolução permanente", os últimos volumes de "As Brumas de Avalon", "Por que ler os clássicos", Hannah Arendt e Benjamin [falta separar]
Abastecer-se de shampoo e condicionador para não filar mais o da housemate[check]
Dar um jeito de levar tudo isso, mais os presentes, sem malas, com sacolas, sem parecer muambeira [hopeless]
Ouvir a mãe falar de política da cidade [check]
Visitar o pai e conversar sobre música e sensibilidade [check]
Dormir [com o calor, impossível, talvez hoje]
Comer [check... like a pig]
Beber [água, check, moça de família]
Desligar [tentativa iniciada há 29 anos sem sucesso]

Inescapável.

-- Filha, precisa comprar tinta pra impressora.
-- O que você precisa imprimir?
-- Aquela matéria do Bolsa-Família que você compartilhou...
-- 72% das famílias trabalham?
-- Isso. 
(pausa longa)
-- Quero guardar pra minha história.
-- Nossa, por quê tão assim?
-- Quando o programa começou, em 2005, eu tinha acabado de virar secretária de promoção social de Pedreira (interior de SP). Pra mim, não passava de um programa assistencialista, que aprofundava o projeto anterior do FHC. Sempre fui contra assistencialismo e, como até gente do próprio PT acreditava, aquele era mais um. Mas, claro, nunca deixei de dar à família o que era de direito. E então passei a estudar melhor o programa para aplicar as regras rigorosamente e a entender tecnicamente aquele tipo de ajuda. Foi quando, em 2011, Pedreira teve a maior baixa de beneficiários da RMC. Fizemos uma pesquisa para identificar as razões, ainda atribuída, por muitos, aos resquícios da minha resistência. Descobrimos que as pessoas foram trabalhar, se qualificar e puderam propiciar estudo aos filhos que, nos últimos cinco anos, estavam beirando a pré adolescência. Vi mães de família entrarem pela minha porta, cheias de orgulho, com o cartão na mão dizendo que não precisava mais dele. Vi muita picaretagem, mais de quem tem condições e quer aproveitar uma "boquinha" do que de um cidadão que prefere folgar às custas do Estado...
(Outra pausa longa, me vi parada com o mesmo prato pra enxugar na mão há muito tempo)
-- Quero poder guardar e mostrar isso para...
(hora da retirada estratégica)
-- meus...
(Meia-volta volver)
--... netos.
(Juro ouvir alguém me chamar lá fora)
-- Ana Clara, falar nisto...
(Eu já bem longe)
-- As faixas do Haddad vão bem, mãe, obrigada! Só o IPTU que foi barrado, mas o Parque Augusta, óh, tá tinindo....

Templária

-- Filha, que saudades! Estava te esperando...
-- Eu também, mãe! Que linda! Me esperando... praaa...?
-- Ir ao shopping!
-- Oi?
-- É, oras.
-- Cê jura?
-- Sim.
-- Hoje?
-- É.
-- Véspera de Natal?
-- An-ham.
-- Qual?
(Ainda refletindo se ter a livre escolha entre várias barbáries é uma liberdade)
-- Dom Pedro
(Calafrio na espinha)
-- Fazer o quê?
-- Comprar seu presente.
-- Meu? Só meu?
-- Sim, não quis comprar sem a sua companhia.
(Olha o gooolpe)
-- Sério?
-- É...
(Eu já manjada dos paranauê maternal)
-- Deixa pra depois então, meu maior presente é a sua companh...
-- Ah... mas também faltou ainda a lembrancinha da fulana, beltrana...
(bingo)
-- Mas...
-- Vamos enfrentar isso juntas.
(Como uma espartana convocada para a guerra do Peloponeso)
-- Vale pelo menos almoçar em casa pra poupar a cena do restaurante?
-- Vale. Relaxa, filha, já enfrentamos coisas piores...
--... (suspiros)....
#prayforme

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Retrospectiva.

Não, Zuckeberg, desta vez você não acertou a retrospectiva de 2013. Talvez você não entenda que fazer três viagens internacionais no mesmo ano: Argentina, Europa e Pará (sim, lá é outro país, ainda mais se você anda mais de 500km de chão batido na transamazônica em transporte público) seja tão marcante quanto deixar um terrinha que te deu um time para amar, amigos para admirar e praticamente uma nova identidade: café com leite na medida. Talvez você não entenda o que é voltar, depois de anos, para a província paulista e se reconhecer em algumas coisas, não se identificar em muitas outras e se questionar qual é o seu próprio lugar no mundo. Dificilmente, vai compreender o que é participar de um casamento de uma amiga de infância em que você se debulhou em lágrimas porque aquilo ali também é parte da sua história. Você também não vai entender o que é, inocentemente, ir estudar espanhol em Córdoba e, de repente, criar laços fraternos com pessoas de diferentes continentes. Vai ser muito custoso te fazer alcançar, por exemplo, a felicidade de estar lendo um livro incrível, do seu cronista preferido, comprado em uma feira literária argentina, que ainda não tem no Brasil. Como te convencer que a exposição de arte mais fantástica da minha vida estava em Verona, fiquei lá dentro mais de três horas até minhas pernas racharem de cansaço? E, depois, em Málaga, fui em tanto museu que até sonhei com as obras de Picasso. Sem falar na aventura de fazer o Novecento em Milão de playground com uma amiga italiana; ser salva em Lisboa, depois de desmaiar em um hostel, bater a cabeça na parede por causa de uma baita dor de garganta; e ser interrogada e revistada pela polícia federal marroquina. Não sei em qual check-in te dizer que ainda tive tempo de parar no olho do furacão da selva de pedra chamada São Paulo. De repente. Agora, talvez, do ponto paulistano em diante, você tenha acertado. Mas dois mil e crazy ainda não acabou.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Das mina.

-- Peraí, essa "mina" que você tá falando aí é sua namorada?
-- É, meu! Tô te falando... então... aí ela foi lá e...
-- Pera, vc chama sua namorada de mina?
-- Sim, minha mina. Normal.
-- Ah, tá.. "sua mina". Então se chamar de minha mina é sério?
-- Opa, chegar noZamigo e chamar de minha mina é mais sério que noivar.
-- Huum. Entendi. E a peguete assim, ocasional, chama o quê?
-- Uma mina.
-- Ahn...
-- Tipo... saí com uma mina aê, é sair com qualquer uma. Saí com a minha mina, é sair com a namorada.
-- Ah, tá. E amiga é o quê?
-- As mina.
-- Porque geralmente é mais de uma. Saí com as mina.. é um grupo de mulheres, meio genérico. Pode ser amiga, colega do trabalho e tals...
-- Ah, sim, tipo o coletivo de mina...
-- Isso, mas depende. O coletivo de "minhas mina" é "as patroa".
-- Oi?
-- Por exemplo: eu com meu grupo de amigos, se vamos nos referir às nossas mina, às nossas namoradas, falamos: "será que as patroa vão aceitar?". Mas quando elas não estão perto, se não é as mina mesmo...
-- hhhmmmmm...


Porque quem entende de Mina é São Paulo.

Dos hábitos da leitura adquiridos.

À exceção dos romances, a principal evidência que um livro me interessa absurdamente é o fato de não conseguir lê-lo sem um lápis na mão. Vezo universitário, mini-loucura particular ou ambos, a possibilidade de não ter condições de ressaltar trechos que considero incríveis, interessantes ou de uso posterior me aflige bastante. O resultado não é muito bom em termos de futuro a longo prazo, pois acumulo livros rabiscados, grifados, com notas próprias e afins, que podem incomodar um possível leitor a posteriori. Em tempo, o título da vez é "Clases de literatura", do Cortazar, transcrições completas de aulas que ele ministrou nos EUA. Estou fascinada com a obra, em fase de paixão total.

Prova de amor

-- Mas eu tenho certeza que ele me ama.
-- Amiga, isso é coisa séria. É o seu futuro. Acho ele um pouco imaturo e...
-- Ele dá pause no videogame pra falar comigo!
-- ...
-- ...
-- CASA! AGORA!

Angústia moderna

Não deve ser só a minha, mas é algo que, muitas vezes, confesso, não me deixa dormir. Ao assistir e ouvir as novas ondas de músicas, principalmente, de funk, não sei, sinceramente, onde começa o meu preconceito e onde termina minha capitulação. 
Abomino o comportamento preconceituoso diante de quem não entende a manifestação da cultura popular, de quem enquadra o conceito de "bom" em fôrmas pré-fabricadas de uma elite tão ignorante quanto os próprios padrões que impõe. 
Abomino a onda pseudo-intelectual, pintada de che-guevarismo, que só é boa a música alternativa -- a new wave é a argentina --, a MPB feita na ditadura, os aros grossos dos indies, aquela chatice de olhares blasé, frases soltas e efeitos instagram. Inclusive essa turma se acha o contraponto à primeira, o que não o é definitivamente -- só é outra fôrma, mas com poá vermelho e filtro laranja. 
Feminista que sou, também procuro entender que tipo de discurso as mulheres recorrem para denunciar um mundo de opressão, principalmente, aquelas que sofrem a dupla, incluindo a de classe. E torna-se óbvio que aprofundar as contradições do machismo -- reforçando "ao revés" o preconceito -- pode causar um efeito de choque contraditório. 
Porém não posso negar que há um limite. Não sei qual é. Mas algo que diz, que sim, o há. Eis aí a minha (ou a nossa, acredito que mais pessoas devem sentir isso) angústia. Assistir mulheres fazendo o "quadradinho de 8", letras feitas a partir de criado-mudo, repetições sem sentido e a sensação de que "qualquer coisa" vira sucesso é angustiante. Tão angustiante quanto ver que qualquer coisa melódica com um fundo de violão, um triângulo, uma rima pobre (ou sem rima mesmo, mas pobre) e uma cara blasé explode no meio que se auto-denomina intelectual. Tão angustiante quanto ver que qualquer patricinha do cabelo colorido cantando coisas em inglês, tomando porre e dando pt com a imprensa de plateia explode no meio pré-adolescente e por aí vai. A tragédia fica mais evidente no funk por várias questões -- pessoais, sociais, morais, políticas, econômicas --, mas o quadro geral é decadente. Desesperador. 
Uma análise séria partiria do princípio que o sistema capitalista é maquiavélico, portanto se aproveita do que é "essencialmente" popular, digere e devolve como lixo cultural. Mas, sabemos, as coisas não são lineares. Elas são cíclicas e contraditórias. E é onde eu me pergunto: É possível avaliar o funk sem ser preconceituosa? Ou melhor, é possível ter um olhar crítico sobre esse fenômeno sem carregar o vício acadêmico, o preconceito social, os vezos morais? Como analisar a qualidade de um fenômeno musical, ainda em seu tempo, se afastando "conceitualmente" dos valores dele?

Queria ver se fosse em bairro rico...

Aí você liga a TV e ouve do repórter: "queria ver se fosse em bairro de classe média se a polícia saia atirando desse jeito". Súbito de consciência? Excesso de doRgas nos bastidores? O mundo melhorou? As pessoas receberam a luz? Tomaram pílula vermelha? Não. Não mesmo. 
Aí você se pergunta que tipo de interesse está por trás da história desse tal bandido matemático. Porque, come on, esse argumento do "queria ver se fosse em bairro rico" serve para tudo neste país. Tudo mesmo. É cotidiano. Para quem sofre com a violência, a desigualdade e o preconceito de classe todo dia, é como se o repórter falasse: "quero ver todo mundo comer arroz com feijão no almoço". Mas é claro que aquilo dito assim, amiúde, pelo maior conglomerado de comunicação do país, aguça a curiosidade. 
Como assim não justificaram uma ação que não saiu um civilzinho morto sequer e conseguiram matar um bandido procurado? Quantos milhões de ações semelhantes, similares, ipis is literis, não foram feitas e defendidas e justificadas? O resultado disso, infelizmente, está espalhado pela minha timeline. Com um bando de gente, achando "rebelde" falar mal da Globo, usando um preceito, diria, até malufista de lidar com a violência no país. E isso acontece justamente quando a empresa -- por razões que me coçam as entranhas saber -- se aproxima minimamente de um debate (superficial, mas ainda um debate) sobre a atuação da polícia. 
Ninguém é inocente. Não acredito que a empresa tenha avançado, é claro que há interesses escusos, mas é bizarro. Ou não. Ou fui eu que fiquei muito tempo offline da TV e perdi alguma coisa nos últimos 10 anos. Agora que voltei, levo um susto atrás da outro, além da verossimilhança sem noção da Gloria Perez.

A saga do presente do dia dos pais.

Na livraria Cultura, do Iguatemi, gigante e lotada.
-- Ele é músico.
-- Ah, tá. Tem uns livros de banda aqui...
-- Não, não. Ele é mais, hum... clássico...
-- Música clássica? Tem uns guias interessantes aqui...
-- Não, não. Ele até gosta, mas “guia” e “mini história da música x, y, z”... é... acho que ele já passou dessa fase... [em pensamento: há muito tempo]
-- O que ele faz?
-- Ele toca violão, mas agora estuda percussão. Já teve uma banda de chorinho em Campinas, tocou violoncelo e piano, foi banjista uns 10 anos em uma jazzband, ganhou vários prêmios fazendo arranjo para teatro e...

[Atendente faz cara de assustada]

-- Ok. Agora ele dá aula de percepção musical. É professor.
-- Percepção musical? Que legal! Tem um livro chamado “Alienações Musicais”. Ele vai adorar, me acompanhe, por favor.

[Vamos até o setor. Reviramos tudo e nada do livro.]

-- Me dá só um minutinho.

[...]

-- Fui lá no sistema. Só tem UMA unidade na livraria. Se não está aqui no setor, pode estar na mão de algum cliente ou...

[Ela dá um sorriso amarelo]

-- Ou...?
-- Em qualquer lugar da livraria.
-- Oi?

[Faço um panorama com o olhar]

-- É. Vamos ter que procurar. Há três dias, ele foi bipado nas maquininhas de checagem de preço lá da frente. Alguém deve ter tirado lugar e não deve ter colocado de volta.
-- Mas faz três dias. Será que algum funcionário...
-- Muito provavelmente não. Desde as férias, estamos muito sobrecarregados. Você está com muita pressa?
-- Não, não. Vamos procurá-lo.
-- Óh, ele é gordinho, tamanho médio e coloridinho.
-- Ah, claro!
[Nos dividimos e saímos à procura. 20 minutos depois, eu e ela nos reencontramos e nada. Mais dois atendentes se juntam a nós e começam a conversar entre eles. Eu só escuto.]
-- Já procurei até no setor psiquiatria e neurologia.
-- Esse tal de Oliver Sacks também já escreveu sobre tudo.
-- Mas tem “musicais” no título, não é possível que alguém tenha confundido.
-- Ah, mas começa com “alienações”, vai que alguém não leu o título até o fim e foi parar em psiquiatria.
-- Tudo bem, gente, não está nem um, nem no outro. Mas ele está aqui, em algum lugar. Vamos encontrá-lo.

[ Eu, já meio sem graça por ter mobilizado tanta gente em um dia tão movimentado, preparava um discurso de super agradecimento, dizendo que meu pai também ficaria feliz se eu  levasse o “Solo”, de memórias do César Camargo Mariano, quando o quarto atendente intervém]
-- Encontrei!!!
-- Graças a Deus! Eu sabia que a iríamos conseguir!! Olha, senhora, achamos o seu livro.

Também #ExisteAmoremCPS

sábado, 9 de novembro de 2013

Mais de um.

Depois de boas risadas com o Ítalo Calvino e as metades do Medardo, fui parar na saga de As Brumas de Avalon. Não que eu tenha abandonado as aulas do Cortazar. É que gente meio desvairada com livro precisa estar com duas (ou até três) leituras em andamento. Depende do humor, da bolsa que carrega e dos transportes coletivos utilizados na semana.

Padariês

Padaria é de tudo em São Paulo. Restaurante, boteco, lanchonete, bar fino, bar chique, cafeteria, loja de suco, rotisseria, mercado, frutaria, sacolão, pastelaria, sorveteria e, se couber em mais alguma prateleira, cervejaria, adega, doceria, a la carte, quilo e, lá no canto, escondido, rola até um confessionário. Ecumênico, para não perder cliente. Tudo ao mesmo tempo. Pedir um lanche é sempre uma aventura diante de tantas possibilidades e se, claro, você é um cliente novato. Como eu. Sempre fui do velho pão na chapa e pingado. Até que uma vez vi chegar o pedido de uma moça: pão integral com queijo branco. Lindo. No outro dia, me arrisquei:
-- Moço, por favor, quero um pão integral com queijo branco.
-- Pão integral da casa ou de fôrma?
-- Hum?! Hãããm... da casa?
-- Com queijo prato, suíço, minas ou branco?
-- Hãn? Todos esses são brancos? 
-- Sim. Não são mussarela. 
-- Ah, claro!...Eu quero queijo branco, aquele branquinho... molinho... redondinho, saca?
-- Com chapa ou sem chapa?
-- Com chapa.
-- Fulano! Faz um da casa com minas na chapa.
Padariês. E como o branco virou Minas, só Deus sabe. Mas não é só isso. Hoje, fui no tal Estadão. Dizem que é famosa aqui, a nata gastronômica se reúne no local. Algo assim. Tem altos lanches, refeições, sucos, pernil, coxinha, frango frito, melancia, o cardápio é tão grande que os itens rolam pela parede inteira. Eu passei lá porque é caminho de casa, chovia e estava com preguiça da fila do supermercado. E, afinal de contas, é uma padaria. Ou era para ser.
-- Moço, por favor, me vê 300 gramas de queijo mussarela fatiado.
-- Sim, claro. Pode vir por aqui. Pernil, né?
-- Não, moço. Queijo. Mussarela. Fatiado.
-- Ah, tá. Pra levar ou pra comer aqui?
[Oi? Quem comeria essa quantidade de queijo sentado aqui?]
-- Pra levar... 
-- Você quer dentro do pão?
[Tá de zôa. Ele pensa que vou enfiar quase meio quilo de queijo entre duas fatias de pão de forma light, é isso?]
-- Não, moço. Quero só 300g de mussarela fatiada.
-- Frio ou quente?
-- Frio! Frio! Pelo amor de Deus...
-- Ôô, Beltrano!!! Vê ai 300g de queijo fatiado, sem pão e sem chapa pra moça aqui! Ela quer pra levar, hein!
Padariês paulistano. Lindo, não?

Pequenas trocas coletivas da semana.

Ensinei a galera a falar "sobrar mais que jiló na janta", "pra acabar com o pequi de Goiás" e "tira o pé da minha janta". Na onda free style mineira, ainda apresentei Celso Adolfo e Thiago Delegado. Apesar de não fazer muito sucesso pras bandas de cá, o estilo progressivo das montanhas tem seu lugar garantido nessa paulista desterrada. Minha roomate me introduz às séries épicas, de vampiro, médicas... falou inglês, tem legenda e uma pegada nerd é com ela mesma. Hoje, fiz um intensivo de Utorrent, filmes e novas bandas, de Fortaleza ao Alabama. Sem falar no PhD em mobilidade urbana paulistana, contas a pagar da cidade, programas de geração de renda e um tchan de feminismo constante. Intenso. Como a vida deve ser. Sempre.

Flores e malas.

Plaza de Mayo, Buenos Aires. Ela, feminista e revolucionária. Ele, intelectual de esquerda. Há três dias, viviam aquela relação típica de quem procura ser livre dentro da prisão. Ele voltaria para o Brasil naquele dia. Combinaram de se encontrar no fim da tarde para irem juntos ao aeroporto. Ela então resolveu surpreender: comprou uma rosa em um dos quioscos da capital argentina. Calculou o tempo exato até se encontrarem, de modo que a flor não murchasse e preparou uma mega operação para escondê-la dentro do casaco, sem danificá-la. 
Frio na barriga. E no corpo inteiro: o fim do inverno ainda pelejava no vento cortante dos portenhos. Cinco em ponto, nada. Mais 10 minutos e apenas rostos de turistas, trabalhadores urbanos ensandecidos e vendedores de imãs na praça. A mão cansa de segurar. Ele vai perder o voo. Será que ele vai gostar? Será que alguém já subverteu a ordem para ele algum dia? 15 minutos. Ele aponta lá na esquina, todo ofegante, com a bagagem nas mãos. Ela prepara aquele momento, tem tudo para ser emocionante, abre aquele sorriso, põe a mão dentro do casaco e:
-- Para você!
-- Mas não era eu quem tinha que fazer isso? 
Ela já desapontada, enquanto seu ombro era novamente atraído pela gravidade:
-- Sim, mas eh sempre bom subverter as regras, não?
-- É, você tem razão. 
-- Obrigado. 
-- Agora, você sabe o que vai ter que fazer com ela, né? 
Um fio de esperança irá salvar aquele momento:
-- O quê?! 
-- Carregar... porque eu estou cheio de mala... e estou atrasado.

Ela caminhou com a própria rosa nas mãos. Desolada. Quem acabava de chegar, jurava ter acontecido mais uma daquelas lindas cenas. Uma vózinha até suspirou de emoção. Ao entrarem no metrô, uma criança carente, ao pedir uma moeda para o casal e lhe ser negada, apela:
-- Moça, então me dá esta rosa?
-- Claro.
Ele nem percebe. Ela só pensa que, pelo menos a rosa, teve um fim mais digno.

Para 
Bia Nogueira-Lotado
, com amor.

Sinal dos tempos.

Telefone toca insistentemente depois de 345 chamadas não atendidas.
-- Oi, mãe, diga.
-- Quero saber: que horas você vem?
-- Devo sair do Terminal umas 19h... Ah! Aproveitando a ligação, você não consegue alguém pra me buscar em Campinas? Estou com a mala grande e...
--Então, por isso estou te ligando desde cedo...
-- Já viu com alguém? 
-- Não, não vi. É que eu queria ver se você não podia ir me buscar...
-- Eu? 
-- É, você.
-- Onde?
-- Em Campinas.
-- Você quer que além de pegar dois busão sendo um o circulazão pra Paulínia, eu chegue em casa, pegue o carro e volte pra Campinas pra te pegar?
-- Sim, é isso.
-- Nossa, mas vc vai estar aonde?
-- Numa festa de Halloween, no condomínio de um amigo. A festa começa às 17h...
-- Oi?
-- Mas se vc não puder ir, estiver muito cansada, tudo bem... eu não vou...
-- Tá bom, vai... eu vou te buscar...

Dona Antonia

Recadinho da Dona Antonia, que trabalha em casa: "Ana Clara, muito obrigada pelo presente. Gostei muito. Eu peguei o pedaço de bolo. É o seu bolo e comi e levei dois pedaços. Se você achar ruim, agora não tem. Já comi. Ana Clara, tudo de bom para você e muito obrigada. Até terça. Fui".

Na loja oficial da TIM

- ... e agora é só ligar para a Central de Atendimento e está tudo resolvido.
- Que bom! Eu esqueci meu cel em casa. Tem como ligar daqui?
- Olha até teria. Tem uma salinha ali no fundo só pra isso. Mas o telefone está quebrado...
- Por quê?
- Um cliente... (riso contido)
- Ah, já sei! Se enfureceu com o atendimento... (riso contido 2)
- Isso. Parece que não aguentou esperar... (riso um pouco mais aberto)...
- Rá! Eu sei como é... só não quebrei o celular ontem porque era meu. Talvez se estivesse no telefone da empresa faria o mesmo... (gargalhada dos dois)
- E faz quanto tempo isso?
- Um mês.
- Um mês!?!?! E não vão arrumar, não?
- Não sei, não, viu... pq não é a primeira vez que isso acontece...

Nasce a primeira receita.

Nasce a primeira receita. Tudo caseiro: da massa ao recheio. A garantia de dar certo não poderia ser melhor: Bia Abramo teacher, chéfa, friend, feminista e entende gente que não entende, tipo eu. A massa est très facile daquela que você se pergunta internamente: "dá certo mesmo?". O recheio é misturar as paradas e tudo no forno. Confesso que exagerei um pouco no azeite, mas foi o melhor dos mundos. O cheiro exalou pela cozinha inteira. Já no prólogo dessa carruagem gastronômica, você descobre que existe uma lógica "oculta" na definição e superação de gostos. Essa dinâmica, para mim, é mais clara em outras áreas: literatura, filme, política. Mas nessa nova aventura, é possível notar que, de alguma forma, existe um padrão. E depois falo mais sobre isso. Sobre a torta, batizo de La torté de Biá. Todas oxítonas assim em um francês bem macarrônico. Porque ela diz vir lá das bandas do De Gaulle e tá falado.

Tomates verdes egoístas.

Até o mais protozoário dos seres sabe que nunca tive apreço por cozinhar. Menos por resistência do que por falta de oportunidade ou catalisadores: o pouco espírito Amélia da minha mãe passa bem longe do fogão; não fui criada perto de avós e afins; quando fui morar sozinha -- época em que, geralmente, as pessoas aprimoram certas habilidades além do miojo-quando-a-mãe-viaja --, rachava de estudar (por outras várias razões) e não tinha tempo. Somou-se a esse cenário, a disposição pela organização política, a vida profissional (leia-se louca e bandida) ganhou corpo e... bom... cheguei na casa dos quase-30 sem ter um banquete digno para chamar de meu. Não significa, claro, que eu não saiba fazer o básico. Mas em tempos em que ser gourmet é modinha e fazer gastronomia não é mais perda de tempo, estou longe de olhar para a cara do alho-poró e chamá-lo de melhor amigo. Receitas que se intitulam básicas-e-rápidas-de-fazer e me pedem molho curry com misto-de-ervas-finas-colhidas-no-topo-do-tibet me dão preguiça. E olha que morei em BH durante quatro anos. Terra em que adolescentes de 15 anos trocam receitas de pão de queijo no busão voltando da escola. Não desenvolvi aquele prazer quase orgasmático dos cozinheiros ao verem outras pessoas degustando e aprovando o "prato". Só penso na louça para lavar e no quanto nenhuma dessas gulosas contribuiu para o trabalho. Tudo fluía nesse limbo de a cozinha ser o magma da injustiça coletiva doméstica até o molho de tomate. Não sei por cargas d'água, enjoei do molho pronto. Birra total. Eu, ser humano livre das frescuras do povinho gourmet, estava lá... com chiliques e cara feia diante do Pomarola na estante do supermercado. Resolvi encarar a realidade, comprar os tomates vermelhinhos e saciar a recém-exigência surgida das entranhas. Ficou tão bom que resolvi aprimorar. E toda noite, na volta para casa, penso no que posso comprar pelo caminho e, pasmem, cozinhar. Para mim.

Begginer SP

-- Aí, amanhã a gente se encontra em frente ao Banespinha.
-- Ok. Mas onde fica?
-- No Viaduto do Chá.
-- Ah, tá.
[...]
No Viaduto do Chá.
-- Oi, moço. O senhor sabe onde fica o Banespinha?
-- Fica na torre.
-- Ah, claro. Pode me dizer pra que lado é?
-- Pra lá. 
-- Pra lá?! Certeza?!
-- Sim.
-- Ok, obrigada.
[...]
-- Oi, moça. Nesta torre é só banco?
-- É. Mas tá em greve, não pode entrar.
-- Não, eu sei. Mas não tem mais nada aí dentro?
-- Não, moça, tá em greve. 
-- É só banco, né?
-- O que a senhora quer?
-- O Banespinha.
-- Não, aqui é o Banespão.
-- Onde fica o “inha”?
-- No Viaduto do Chá.
-- Qual é o portal que ele aparece? Eu chego no Viaduto, falo a palavra mágica e tchan-ram?!
-- Oi? Hahahhaha! Não, Banespinha é o prédio da prefeitura.
-- Aaaaaaaaaaahhhhh...

Balança de amor.

Aí, depois de quase um mês fora de casa, sua mãe, morreeeeendo de saudades, olha bem pra você e diz: "Filha! Como você engordou!! Tá com o rosto cheinho e o corpo bem fofinho, hein...". É muito amor.

Diário de bordo. Córdoba.

Pequenos diálogos. Traduzidos.
-- Não come carne?
-- Não. 
-- Veio do Brasil e não come carne?
-- Não.
-- Veio para Argentina e NÃO come carne?
-- ... ... ... não?

(Para uma amiga japonesa)
-- Vamos sair hoje à noite para um barzinho. Quer ir com a gente?
-- Para quê?

(Num bar phynno tipo Hard Rock, já sentadas na mesa)
-- Que tem para comer?
-- Nosso cardápio. Pode escolher tudo menos os pratos principais, as massas e os...
-- Nossa, não sobra nada. Por que isso?
-- Acabou o gás.
-- Oi?

(Em outro bar, ao chegar)
-- Não podem entrar ainda. Faltam 15 minutos para abrir.
-- Ok, esperamos.
-- Obrigada.
-- Ah, espera! Tem gás aqui?
-- Oi?

Dicionário da tia Lair, a carioca.

Ela e minha mãe conversam às gargalhadas:
-- ahahahhaa... são tudo... o termo é esse... hahaha... équidiPirú
[eu pego o bonde em alta velocidade]
-- Oi? Équi de quê? Do que vocês estão falando?
-- De Peru, Ana Clara!
-- Quem viajou para lá?
-- Não! Não é esse Peru, é o outro peru... mais genérico... de todo homem
-- Ah! Hahahah!! Só podia ser esse pra ser tão engraçado... e o que é que tem?
-- Não, a gente estava falando sobre o deputado carioca Fulano de Tal, que tem um monte desse.
-- Um monte?!? Como assim?
-- São aquelas mulheres que ficam em volta do político, não trepam com ele, mas também não deixam ninguém trepar... 
-- Gente, que horror! Hahahah!! 
-- Isso é muito comum.
-- É? Nossa, que vida triste... mas ele é casado?
-- Não é casado nada. Ele faz Pilates comigo. É de esquerda. Então fica rodeado daquelas comunistas puritanas, umas cinco... acompanham ele até nas aulas... não dão pra ele, mas também não deixam ele usar o...
-- Huuumm, entendi. Então elas são deck-de-peru...
-- Não, Ana Clara!
[gargalham horrores]
-- São BÉ-QUE... 
-- Aaaaahh, tá... Back, de inglês... 
[faço uma cara de quem entendeu a tradução, mas não entendeu o sentido, e não tinha entendido mesmo]
-- Ana Clara! Back é a posição do cara que não deixa a bola entrar!
[Espanto]
-- Tia!!! Que horror!! HAhahahaha... de onde você tira esses termos? HAhahahah...
[Todas rolando de rir, minha mãe não aguenta nem falar]
-- Você não viu nada! Ainda tem o back de b...
-- Tia, pára! Chega! Eu já entendi! MESMO!

Causos da tia Arlete. A vida – privada -- no interior de Goiás, há 40 anos.

-- Eu tinha acabado de comprar a casa em Couto Magalhães. Quatro quartos, corredores largos, espaço amplo, um luxo... uma da casas mais luxuosas da cidade. Mas não tinha banheiro, nem pia na cozinha.
-- Como assim?
-- Uai, não tinha. 
-- O banheiro e a pia eram para fora?
-- Não. Não tinha em lugar algum. Quando eu fui de mudança, levei os encanamentos, privada, pia, material de construção e fiz tudo direitinho.
-- E... como o povo de lá fazia?
-- Não sei. Procurava um mato, sei lá... fiquei com a mesma pergunta na cabeça aquela época.
-- Gente... mas... e aí?
-- A casa virou atração na cidade! Ou melhor, o banheiro virou. O povo fazia fila e...
-- Fila pra usar o banheiro?
-- Não! Pra ver!
-- Pra ver?!
-- É! Minha filha, que estava com 4 anos, mostrava tudo como funcionava. E falava assim: “Óh, aqui você senta e faz cocô...” e simulava. O povo ficava horrorizado. E ela continuava: “aí, depois você puxa essa cordinha...”. Quando a água saía da descarga, eles levavam baita susto! Era de morrer de rir! E ainda tinha o bidê... eles não se conformavam em ter que se lavar depois... 
-- Mentira! Hahahahahha!!!
-- Não parava por aí, não!! Eles queriam saber para onde aquela excrescência toda ia... minha filha apontava o encanamento e os levava até a fossa! Eles queriam mesmo VER o trem... ééécaaa...
-- ... eu não me conformava daquele povo fazer tudo no meio do mato. Achava uma porquice sem tamanho. Lá é uma região que chove muito... como é que eles faziam? Fiquei indignada... 
-- Credo, tia, que nojo!!! 
-- Eu pensei que nem você, sobrinha. Imagina, você lá com as suas necessidades e a água da chuva escorrendo... que horror!!! Nem na casa do PREFEITO da cidade tinha banheiro.
-- Meu Deus! Mas e aí, depois que eles viram o que era um banheiro, como funcionava, tudo limpo e organizado, eles até agradeceram, não?!
-- Agradeceram?! Que nada!! Pelo contrário, ficamos com má fama! Eles falavam: “Esses paulistas porcos... cagam tudo dentro de casa! Éca!! E ainda tomam banho no mesmo lugar! Deus me livre!!”.

O Tempo de BH.

O primeiro balanço importante da minha volta para SP é a qualidade dos jornalistas do jornal O Tempo, de BH. Se antes um julgamento "neutro" não era possível por estar imersa na realidade belorizontina, ao voltar para terras paulistas, só posso dizer que existe um respiro em Minas Gerais. Por ser um reduto, não significa que não tenha contradições, problemas e outras avarias típicas da chamada "grande imprensa" do país. É uma empresa, possui interesses como tal, e tem, claro, suas relações políticas. Porém, dentro do "problema geral", digamos assim, existem variações. E o jornal O Tempo é a variação positiva. Não em tudo, claro, mas na maior parte das vezes. E para mim, é o que importa. O mérito, sinceramente, vai para o chão da redação. E, de lá, não passa. Meus orgulhosos parabéns.

Mineirês.

Hoje me deparei com uma situação curiosa. Aqui em Minas, tem a expressão "óp'cevê" que é usada para chamar atenção a um detalhe do caso que será abordado em seguida. Ela só faz sentido se dita assim mesmo "óp'cevê", porque é um regionalismo. Como todo mineirês é a contração de uma frase. No caso: "olha para você ver", que não passa de um pleonasmo sem sentido. Aí, em um determinado momento, uma fonte, bastante polaite, me solta solenemente por extenso "o-lha pa-ra vo-cê ver". Achei bem interessante a formalização do coloquialismo.

Sobrevivência

"É que estamos em uma democracia. Se fosse uma ditadura, seria mais fácil", Marcio Lacerda, prefeito de BH. Se eu fosse da assessoria e sobrevivesse, eu escreveria um livro e.... hum... não, eu não sobreviveria.

Como faz?

Aih você chega em casa, entra na cozinha e se depara com um bolo de cenoura de cobertura de chocolate. Resiste à tentação e abre a geladeira em busca do seu iogurte light insosso que se diz de morango, mas é 0 calorias e muita força de vontade. Então você dá de cara com um pudim de leite condensado ostensivo e uma energúmena torta de chocolate e suspiros. Antes mesmo de fechar a geladeira, sua mãe grita da sala: "tem torta de palmito no forno". Como faz?

Praga futebolística.

O time do Botafogo estava na sala de embarque. Tinha acabado de sair quando eu fui comprar uma água e ouvi o desabafo do vendedor:
-- Os caras se queimam por tão pouco. Dei uma água pro jogador, ele colocou dentro da bolsa, depois teimou que eu nao tinha dado. Pedi pra ele olhar, mas nao quis. Acabei dando outra. Depois ele se afastou e ficou olhando pra cá. Certeza que viu o erro, mas nao quis admitir. Aí, deu pra perceber, ficou com a consciência pesada. Depois leva um carrinho, quebra uma perna e fica seis meses sem jogar e não sabe o porquê.

Diário de bordo. Técnica revolucionária...

Técnica revolucionária de fazer passar o tempo em aeroportos. Sente-se ao lado de uma tomada. Conecte o celular. Espere. Pessoas surgirão pedindo para carregar cinco minutinhos. Já ouvi três histórias de vida. Dois garotos com gostos musicais distintos me pediram para mediar um mini debate entre sertanejo universitário e micareta. Uma senhora de 70 anos conta que o maior prazer dela eh viajar de carro longas distâncias. A mais recente, semana passada, foi entre Aracaju e São Paulo. ELA dirige. Sozinha. Um rapaz acaba de terminar um namoro longo. E enquanto volta para a terra dele, continua a discussão do fim da relação pelo FB e me pergunta, debulhado em lágrimas, o que dizer para a (nao mais) amada.

Diário de bordo. Lambretinha de água.

-- Ana Clara, como é que chama mesmo aquela lambretinha de água?
-- Jet ski, tia.

Diário de bordo. Quadrilha paraense.

As muriçocas amavam Ana Clara que amava o repelente que não amava ninguém. As muriçocas foram pro mato, Ana Clara voltou pra SP e o repelente foi parar na bolsa da tia que nao tinha entrado na história.

Diário de bordo. Transamazônica.

Aqui, o motorista nao sai na hora... mas espera um comprar água, a outra comprar remédio, a outra lavar a boca do filho suja de iogurte, o cara chegando de moto, o pai do passageiro que esqueceu o celular e a vó da outra que traz um bolo quente ainda na forma. Se vc tiver o cel do motorista, ele ainda para no meio da pista, na saída da cidade, para esperar mais um passageiro chegar correndo de mototaxi. E se tiver faltando um real para completar a passagem, ele nao amarra e leva do mesmo jeito. 

(Marabá-PA x Pacajá-PA)

Receita sertaneja

Depois de uma overdose múltipla do rodeio de Jaguariúna, notei que os shows de sertanejo seguem um padrão que varia muito pouco.
1) Abre com a (geralmente única) música que está bombando. 
2) Toca mais três músicas famosas de outras duplas sertanejas. 
3) Toca uma desconhecida do artista/dupla. 
4) Toca mais duas músicas famosas de outras duplas.
5) Toca uma música beeeem melosa com um piano de cauda que surge do além
6) O artista faz graça, explodem fogos, dançarinos, piruetas e sanfonas.
7) Toca DE NOVO a (geralmente única) música que está bombando por quase 10 minutos.
 Toca dois funks e dois axés.
9) Toca três músicas clássicas do sertanejo anos 80/90 (a única hora que vale a pena)
10) Toca MAIS UMA VEZ a (geralmente única) música que está bombando por quase 15 minutos. 
Fim do Show.

Avaliação física

Aquele momento da avaliação física depois de três meses parada e três quilos na conta. 
...
-- toma alguma remédio?
-- só anticoncepcional
-- qual?
-- diane 35
-- você sabe que...
-- da trombose? Sei, eu vi a matéria. Não, ainda não encontrei equivalente. Sim, ainda vende nas farmácias. Não, nunca tive problemas. Não, não posso usar dosagens menores, porque trato de SOP, não só evito Durval. Mais alguma questão?
-- você é de Paulinia?
-- Pardon?!
-- Vamos pesar. Você está de top por baixo?
-- não, mas não tenho problema (tiro a blusa sem nenhuma conotação ou reticência)
-- você chega aos 60kg?
[olhar fuzilante]
-- espero sin-ce-ra-men-te que não, doutor.
-- fique ali de pé. Hum... Você não sente dores na coluna? Dores de cabeça, no pescoço?
-- Não. Nada. 
-- estranho...
-- por que?
-- era pra ter...
-- oi?!?
-- seu joelho eh caído
-- como?
-- não, nada técnico, só uma observação visual mesmo. 
-- Dobra, Estica, estira, expira, inspira, agora uma perna, a outra, as duas, as costas, de lado... Nossa, sua coluna, sua asa, seu isso, seu aquilo, também tem o seu pé, seu dedo, seu ombro... você também já viu que seu olho direito...
-- doutor, olha, nao vamos perder tempo com eufemismos e dramaticidade. Pode chamar a UTI direto. Meu plano é Unimed sem carências. Só diz para minha família que eu os amo muito. A chave do carro está na minha bolsa, só pedir para entregar na avenida tal tal número tal. Também tenho um seguro de vida cujo principal beneficiário é minha mãe. Sou filha única de pais separados e saio da vida para entrar na história. Anotou tudo?

Diário de bordo. Mochileiro Mundo Ninja.

Pausa antes de falar sobre Granada para abordar do mundo nada glamouroso dos mochileiros. Gente que pensa sabe que timeline do facebook alheio eh o melhor recorte de qualquer assunto. Portanto voce, que ainda nem sabe lavar a propria roupa mas se acha esperto para desbravar a Europa fora do roteiro china taka-taka, prepare-se. Hordas de chineses, pessoas nuas e ingles macarronico existirao em qualquer lugar. Tu, moca phynna, musculos em alta: treinaras como tirar agua do joelho com uma mochila de vinte quilos nas costas sem encostar. O lance eh se desapegar. Sim, ou como voce pensa passar um mes sem as suas 325 melhores combinacoes de roupa com 237 combinacoes de sapato e bijouterias. Sem falar na maquiagem contida e a inexistencia de secador. Contente-se com o seu cortador de unha. E, por favor, nao esqueca da pinca. Eu esqueci a minha. E fiquei louca enquanto nao encontrava uma decente. Aprenderas, tambem, que foto e tua experiencia sao as unicas coisas que realmente valem a pena. O resto vai ficando pesado de carregar. E voce, viajante latino americano, sem amigos importantes, vindo do interior, que vai pegar o comboiao da farofa chamado RyanAirWair. Se os onibus vermelhos de BH tivessem um equivalente na companhia aerea seria a analogia perfeita. Treine a simpatia. Voce podera ajudar e ser ajudado por muita gente. Eu tive dor de garganta, pressao baixa, piriri, pararah, perereh, soh nao tive bicho do peh. Porque eh inverno, vai saber. Sobrevivi. Nada me parou. Abra sua mente. Jogue seu preconceito pela janela, de preferencia, antes mesmo de desembarcar aqui. Ou melhor ainda, antes mesmo de pensar em vir para a Europa. Quer saber? Jogue fora anyway. Voce nao precisa disso. Nem se nao vier para cah.

Diário de bordo. Cheguei em Granada...

Cheguei em Granada depois de 9 horas e meia de onibus saindo de Valencia. Pela primeira vez, o wifi do meu celular resolveu funcionar. Mas eh instavel e independe da qualidade da conexao. Eh problema com o telefone mesmo. O povo xing-ling com seus Ipads e Iphones vao bem obrigada. Amanha vou saracotear pela cidade. Tenho muito para falar de Bologna e tambem sobre esse role incrivel pela paisagem de todo o sul da Espanha beirando o mar ateh Lorca e depois pelo interior. Quando encontrar um pc disponivel no hostel, tiro a pena do bolso. Estou no terco final da viagem.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Diário de bordo. Gastronomia.

Nao sou muito da vibe gastronomica. Mas vale nota. Restaurante indicado, garcom consultado e o pedido: berenjenas com miel de cana de azucar. Chega o prato. Olho para ele. Penso: nao passam de berinjelas a milanesa. Catso. E esta porcaria de mel -- liquido em uma garrafa phynna -- veio de enfeite. Para que? Provo o primeiro pedaco. Surto. Super salgados. Olho bem e tem sal semi-grosso espalhado pelas tiras de berinjela como se fossem queijo parmesao em cima da macarronada. What a hell no melhor lugar da cidade? Olho novamente para o mel. Um lampejo de luz brotou na minha mesa. Noto que o garcom observa minhas reacoes. Sim. Agora faz sentido. O mel, a cana, o sal e a berinjela. Juntos. Sen-sa-cio-nal. Nao facam cara feia, fica muito bom. Nao resisti e perguntei se o grau acima do sal era exatamente o plano. Sim. Tanto que o "excesso" eh espalhado. A cobertura da milanesa nao estah salgada. O garcom me explicou: o prato precisa exigir o melado. Se nao, nao passam de berinjelas a milanesa com mel de enfeite. Outro tira gosto caracteristico da Espanha eh pistache. Come-se em lugares tipo butecos copos sujos arrancando o recheio e jogando a casca fora. No chao mesmo. Sem doh. Vicia. O piso se transforma em um super tapete de casca de pistache. Olhando bem, vira ateh decoracao. (em Málaga)

Diário de bordo. Sul da Espanha.

Viajar nove horas e meia de Valencia ateh Granada eh preciso. Uma fantastica viagem em deslocamento. Separei o sul da Espanha porque uma das coisas mais incriveis da cultura europeia, para mim, eh a influencia moura. Custou sangue. Muito. E me de uma boa influencia cultural, digna do nome, que foi realizada historicamente cantando o hino das Nacoes Unidas, com pessoas sorrindo, bandeiras multicoloridas e professores de letras fazendo traducoes simultaneas. A historia eh assim. Cruel e fantastica. Tudo bem que nao queria fazer a experiencia com dois arabes atras de mim no onibus conversando entre si durante mais de tres horas. Nem reclamo. Poderiam ser as nove horas e meia. Pior. Cheguei em Granada e corri para conhecer Alhambra. Aprendi, ainda em Portugal, que todos os lugares iniciados pela silaba Al sao de origem arabe. Alhambra eh um complexo que foi uma cidade palatina arabe no seculo 13. Durou assim ateh o seculo 16, quando os reis catolicos fizeram o desfavor tipico. Alhambra revira as entranhas de emocao. De verdade. Ouve-se ateh o gritinho caracteristico da introducao da musica arabe. Gritinho eh um insulto, na verdade. Eh como se um arabe ouvisse o primeiro acorde de uma musica do Tom Jobim e dissesse que comecou o pancadao. Com o tempo, a gente aprende a se policiar. A riqueza de detalhes da cultura arabe na construcao te deixa sem tamanho diante da grandiosidade. Eh preciso dois tempos em cada espaco. Um para observar os detalhes, outro para calcular a suntuosidade. Voce, latino americano, coloque a mao no bolso e pague um audio guia. Nao rola usar o velho metodo de colar no grupo alheio com guia ao vivo. Eles falam baixo em um microfone com o som distribuidos pelo fones de ouvido de quem, claro, pagou. E garanta a sua dignidade para desfrutar de cada pedaco de historia. Sozinho. Se voce, assim como eu, gosta de entrar em todos os museus, exposicoes e livrarias que ve pela frente, tente se conter e nao se descabele diante do palacio Carlos V. A parte catolica construida apos a ocupacao dos reis. Voce vai se deparar com o museu de Belas Artes de Granada. O primeiro museu publico da Espanha. A maior demonstracao de que arte eh ideologia. Sim, existe. Estah lah. Nas figuras dos mouros malvados tentando assassinar os puros, candidos e abnegados padres e reis catolicos. E uma escultura te deixara boquiaberto com a figura da Maria Madalena mexendo nos cabelos. Depois, fui com uma alema e um guia ingles, do Norte, andar pelas bandas de Cuevas. Subimos no ponto alto de Granada. Atravessamos o muro que corta a cidade. As casas sao construidas dentro de cavernas abertas nas montanhas. Voce sobe, e de repente, esta sobre o telhado da casa abaixo. Muitas pessoas ocupam esses lugares. Crise. E muita coisa do bate papo eu nao entendi. Vejam voces que o sotaque do ingles parecia que limpava a garganta a cada silaba. A alema, claro, entendia tudo. E eu ficava com os finais das frases, quando o guia resolvia emitir algum som nasal. Eu desconfio, na verdade, que sobrei em algum love story ali no meio. Portanto nem me dei ao trabalho de participar da conversa. Boa parte do meu objetivo se cumpriu aqui em Granada. Tive um fim de tarde maravilhoso com a vista sobre a Alhambra e a Sierra Nevada. Praticamente consegui enxergar os conflitos que ocupavam minha imaginacao nas aulas de historia do Ensino Medio.

Diário de bordo. O sardegno.

O sol daqui arde diferente. Eh uma outra Italia. Um sardegno me levou para conhecer um lugar diferente subi e desci montanha de pedra ateh dizer chega. Quando assim o fizemos, ele queria tirar a roupa. TODA a roupa. "What?". Digo "Che?!". "No, please, mean, si vous plait, digo, por favor, pido, per favore, no". Nesta hora, a sopa de linguas latinas e ingles para viagem saem de uma vez. Tipo isso. Quando achei que tinha acabado, ele me pede beijo. Fingi que nao entendi. Bati as fotos e "addiamo?". Depois queria me dar carona. Nao, neh? Poderia ser pior. Eu sei. Temperatura sobe e a inconveniencia tambem. Medo. Foi assim que eu me senti desde que cheguei aqui. Nao sei porque. A sensacao de inseguranca nesta ilha eh maior, mesmo antes da cena acima. Devo ser a unica turista a passeio aqui. As ruas do "centro" sao vielas curvas, anguladas, escuras e estreitas. Lindas na foto, mas dificeis de se localizar. Fora isso, soh tem praia. E eh o ponto que o relato de viagem torna-se, ainda mais, pessoal. Nao tem nada que faca Cagliaria menos que os outros lugares pelos quais jah passei. Tem paisagens incriveis. A natureza eh linda. Subir no Saint Remy e ficar meia hora sentindo o vento do mar eh fantastico. Mas nao me deslumbrou. E quando voces verem as fotos, terao vontade de me socar de tao bonita que a ilha eh. Mas a vida eh assim. Gostos. Eu prefiro me perder em uma cidade historica medieval cheia de igreja e museu do que esse lance de natureza, praia e sol na cara. Heresia seria dizer que Cagliari nao tem igreja e historia, mas nao eh o ponto forte. Mesmo.

Diário de bordo. Cagliari atípica.

Cagliari tem sido super atipica. Por varias razoes. Conheci o primeiro paquistanes e a primeira israelense da minha vida. Ela, uma escritora de conto de fadas feminista, eh uma pessoa muito interessante. Nem escolhi. Ela foi parar no meu quarto. Comeco a achar que esse lance de energia paira sobre o espirito mochileiro. Soh encontro gente de esquerda e feminista por aih. Bom sinal. Conversamos a noite inteira. Ela me contou a real versao da Chapeuzinho Vermelho. A personagem nunca precisou do cacador para salva-la. Na real, ela se salvou sozinha. Em uma outra versao muito mais incrivel que faria aquele papo bobo de "e essas orelhas grandes?" virar piada. E a escritora tem uma certa resistencia aos irmaos Grimm. Claro, quem nao tem. Em sua analise, ela responsabiliza a igreja. E o mix das historias para inferiorizar a mulher. Mas, sabemos, nao foi soh isso. Rousseau, italiano fosse, diria: Maledetta hora da concepcao de propriedade privada. E assim avancamos. No dia seguinte, fomos a Calla Figueira. Estah nas fotos. Ela eh israelense e vive na Franca. Estah aqui para terminar de escrever os livros. E voces acham que nao farei questao de dar um jeito de traduzir e trazer esses livros com finais sensacionais para o Brasil? Aspettame!

Diário de bordo. Verona.

Verona eh apaixonante. Em todos os sentidos. E nem eh porque voce jah chega inspirada pelo Shakespeare. A cidade supera Veneza milhoes de vezes. Nao sei porque raios Veneza ganhou notoriedade tao maior que Verona. Deve ter um bom marqueteiro veneziano sem reconhecimento perdido na historia. Fomos eu e minha tradutora chinesa de italiano. Sim, uma chinesa me fez avancar no parlare italiano. Acontece. Ela partiu no inicio da tarde para Milao e eu continuei em Verona. E lah estava eu... com-ple-ta-men-te encantada pela cidade. Jah fazia as contas para voltar. Quando deparei-me, meio por acaso, com a exposicao "Verso Monet - Storia del paesaggio dal Secento al Novecento". A melhor exposicao que jah fui na vida. Monet, Manet, Botticelli, Matisse, Delacroix, Velazquez, Picasso, Mondigliani e por aih vai. Esse bando de gente boa que te faz surtar nas entranhas. Um beijo para a Ana Magalhes, professora de historia da arte. Sem ela, meu passeio seria praticamente inocuo. E em cada canto de Verona, voce encontra uma declaracao de amor: nas paredes, nos assentos, na beira da ponte, do rio, nos cadeados. Jah aviso quem acaba de soltar um suspiro que o ultimo andar da casa da Giullieta eh sobre a morte. Justo.

Diário de bordo. La sinistra

La sinistra. Foi assim que aprendi direita e esquerda com os italianos. Todos que encontrei ateh agora querem qualquer coisa de La Sinistra para presidente. Ma no Berlusconi, per favore! Estamos em eleicoes na Italia. Esquerda com politica de direita. Direita que ganha ninguem sabe como, porque ninguem conhece alguem que votou. Governo que faz alianca direita e esquerda. E uma "nova proposta" que se assume "nem de esquerda, nem de direita", mas os italianos juram que eh algo como uma esquerda ecologica quando tentam explicar. Soh disse: "entendo perfeitamente". Quem nao? 

Diário de bordo. Veronense.

No caminho, tive um papo sério com um Veronense. Tentei explicar para ele que esse negocio de Capuletto e Montecchio estah por fora. E ainda provei por A mais B que se Shakespeare tivesse recebido o espirito macunaima dentro dele, quando escreveu Romeu e Julieta, a historia teria sido outra, se fosse em Brasilia. Primeiro que esse negocio de ir ateh as ultimas consequencias nas aliancas eh demais. Cicuta, facada no peito eh muito radical. Primeiro, o casal teria que chamar Eduardo Campos para fazer o meio de campo. O cara eh fera, poderia agradar o Capulletto a nivel federal e os Montecchio a nivel regional. Ou vice-versa. Tanto faz. Mesmo. Depois, se o sangue-no-zoio ainda continuasse, eles poderiam propor ter numeros de filhos pares. Cada um que nascesse ia para uma familia. Nao importa se iam cumprir ou nao. Tentei explicar para o Veronense que nao faz diferenca se os termos do acordo irao se cumprir, o que importa eh garantir o casamento. Ele fez uma cara esquisista. Depois falei para ele procurar por Paulo Maluf e Sarney no Google. Me poupei de ir tao a fundo. Casamento legitimado, as coisas podem mudar ao longo do tempo. Assim que funciona. Meu novo amigo tambem me questionou sobre como explicar esta alianca para toda a sociedade e a corte veronense. Tive vontade de rir sem parar, mas me contive. Falei que isso, o casal ia tirar de letra. Bastava fazer lembrancinhas bem PHYNNAS de casamento e distribui-las antes mesmo do comunicado oficial do matrimonio para todos os parentes e amigos influentes. Era soh ter aquela conversinha no peh de ouvido e descobrir que ateh um Capulletto pode ter uma invejinha de outro Capulleto assim tambem com os Montecchio. Quando o casal menos esperasse, o casamento jah era esperado antes mesmo deles nascerem. Algo como o surgimento de uma nova era. O nascer da democracia e da paz entre as familias. Ia ficar lindo no discurso da festa oficial com os maiores representantes dando as maos e tals. O Veronense estava boquiaberto. Nao eh que tudo fazia sentido? Final com casal morto no Brasil nao ia rolar. Mesmo.

Diário de bordo. De cara com a ficção.

Não tem como enfrentar o frio do Norte da Itália sem ter um dejavu com os protagonistas que você mais amou na literatura e que passaram por isso. Meu coração no freddo eh todo Hans Castorp. Se antes eu jah o tinha em alta estima, sentir na pele o frio cortante me fez caminhar por varias passagens de Montanha Mágica, do Thomas Mann. Um livro que foi um marco na minha formação. Agora também compreendo com uma legitimidade, digamos, biológica, os livros que falavam sobre guerra, amor, historia ou poesia, e tinham o peh aqui... sobre a neve úmida e o frio impensável para nos, brasileiros. E vou ser bem sincera, a neve eh linda na foto. Na foto. Eh bonita de ver. De ver. Porque no fundo, no fundo, eu sempre penso no fim do Hans. Agora eh hora de entrar em casa com calefação obrigatória. Tomei um vinho branco chamado Glicine, da Sicilia, que eh maravilhoso. Nunca gostei de vinho branco, mas esse me ganhou. Os italianos sao muito exigentes com a pasta. E comi cada pasta caseira fantástica. Apesar de estar no Norte, peixe não faltou. E minha amiga me contou que, apesar de Milão ser um ponto no meio superior da Itália, eh o maior comercio de pescado do pais. Eh como se a Gameleira, de repente, começasse a exportar peixe para o mundo. Tipo isso. 

Diário de bordo. Gramática.

Criei vergonha nesta cara lavada e comprei dois livros de gramática italiana para estrangeiro aqui em Monza. Eh certo que se parla piano io capisco, mas não consigo falar. Até em francês eu jah me viro. Passou da hora de saber, pelo menos o básico em italiano, alem de arriverdeci e buongiorno principessa. Neahm?! Começo a estudar amanhã.

Diário de Bordo. Ana Clara de Waterloo.

Desisti da Croácia e juro que não foi nada difícil. Por quatro razões: os italianos me mostraram cidades incríveis, fora do quarteto clássico. Tive dor de garganta e febre nos últimos dias de Lisboa, agora já estou bem melhor. Não consegui companhia e todos os italianos que conheci ao longo da caminhada e, pasmem, foram muitos, salientaram este aspecto. E, por último, o frio. Não é o principal. Mas é o que justifica o titulo. E eu ia perder a metáfora pronta? 

Diário de bordo. Etapas.

Toda viagem internacional tem duas etapas: identificação e desapego. A primeira é questão de necessidade. Procura-se tudo que é familiar para ter agilidade na caminhada. É assim que você grava fácil, em qualquer língua: entrada, saída, ponto de ônibus, telefone, o nome da rua, do bairro, estação de metrô, alimentos, bom dia, boa tarde/noite, obrigada, oi, tchau e afins. Para aproveitar, tem que ser rápido. E já pular para a etapa seguinte. Nos primeiros dias, essa fase é um pouco longa. Ouve-se o próprio celular tocar ou vibrar toda hora, procura-se instintivamente lugares parecidos com o que está habituado a frequentar, pensa-se nos últimos emails que respondeu, quer tirar foto de tudo, inclusive com você no centro. Quando se viaja sozinha, o processo é mais rápido. Você não vai sempre ter paciência de pedir para alguém, que sabe-se lá que língua fala, para tirar foto. Depois de um tempo, focamos a lente apenas no essencial. Dá-se bem menos cliques. O lance é curtir o cheiro, o sol, a paisagem, as pessoas. Para o resto tem o Google. Também desencana-se da alegria de encontrar brasileiros, ela só aparece quando você está em deslocamento e tem dúvida sobre algum procedimento. Em Portugal, por causa da língua, a primeira etapa quase nem existe. Vale destacar que muitos turistas nunca dão o passo seguinte. E passam a viagem inteira fazendo comparações anacrônicas e sem sentido de acordo com a (falta de) bagagem cultural de cada um. A viagem para Porto foi fantástica. Mas se você gosta de silêncio, nunca pegue ônibus em Portugal. Ele vai com o rádio local ligado nas alturas aaaaaalll the time.

Diário de bordo. Crise.

Por mais turista desapegado que você seja, por mais fútil e superficial que você seja, por mais desinteressado que você seja, por mais alienado e, incrivelmente, banal que você seja, não tem como escapar do tema da crise na Europa. Se não for por palavras como essa que você encontra em uma parada de Metrô, vai ser nas capas dos jornais, nos chamados contra a política do governo, nos mendingos nas ruas, nos pedintes pelo transporte público. Nós, brasileiros da minha geração, temos uma relação paradoxal com uma crise econômica violenta. A última se deu lá no início dos anos 90, então é um misto de nostalgia com crueldade. Eram tempos difíceis, mas eram tempos da infância, em que nossos pais, na maioria, se esforçavam para o cenário não parecer tão brutal como era. Aquela coisa meio "não tinha coca-cola todo dia, mas a gente era feliz". Uma ova. Hoje, que somos os futuros possíveis desempregados caso uma crise semelhante se abata sobre o Brasil, é desesperador. Hoje entendo, com mais crueza, a tensão que se abatia sobre a minha família, ou melhor, sobre todos os brasileiros. Nós, infelizmente acostumados a conviver com a pobreza e a desigualdade diante de nossos olhos cotidianamente, nos chocamos quando nos deparamos com uma realidade que, na prática, nos deveria chocar todo dia em nossa terra natal. E é quando você, toda serelepe, depara-se com uma frase dessa. Neste sábado, tem manifestação marcada de um tal Bloco de Esquerda. Não estou por dentro das minúcias políticas de Portugal, mas sei das questões principais que são as que realmente importa. Se tudo der certo, estarei lá para conferir.