quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Engole esse choro (carta a um amigo)

Ei, amigo, estava pensando esses dias sobre aquele lance de engolir choro. A identificação foi tanta que tenho certeza sermos de uma geração de engole-choros. Quase todos os meus amigos, por quem tenho algum respeito intelectual, político ou afetivo, passaram por isso. Se fosse hoje, terapeutas e psicólogos ficariam discorrendo sobre o quão “coitados” e “oprimidos” somos; como nossos pais foram uns irresponsáveis por não “entenderem” o quão especial são seus filhos mimados e essa papagaiada toda que – juro ter dó muitas vezes – incutem nesta geração posterior à nossa que se acha tão além do bem e do mal. Se existe algum prejuízo em engolir essa banana de dinamite interna que explode a todo momento em nosso ser (o que não significa, claro, que não nos afeta, mas nos faz minimamente conter as lágrimas), isto nos faz enxergar o outro ou a conjuntura em que estamos inseridos. Explico-me. Somos frutos de uma geração que juntou a década perdida (80) com a década desperdiçada (90) e uma crise econômica cretina que afetou tudo até nossa cadeia e gosto alimentares dirá nossa subjetividade. Somos filhos de mães e pais que não sabiam quanto ia custar o pão no dia seguinte, que dependia do programa de governo daquele corrupto safado que dava leite, mas não aumentava salário, nem garantia educação, transporte, a mínima condição de sobrevivência. Nos fazer engolir o choro talvez fosse a melhor forma de nos preparar para a vida, para a selva, para aquela inflação que poderia fazer tudo ficar pior do dia pra noite, para aquele momento de ver o próprio filho dormindo e ter que sustenta-lo sem ajuda do pai, da família, de ninguém... se não apenas, dos próprios vizinhos que passavam tanta necessidade quanto a gente. É essa certeza que faz nossos draminhas cotidianos –  nosso pé na bunda amoroso, aquele(a) cretino(a) que não entende nosso jeito de amar, o chefe opressor, o salário baixo e a jornada desgastante – ficarem pequenos, porque aprendemos a olhar para o lado. Saímos de nosso casulo laboral e quando pensamos em chorar, vemos pais de família, mães com seus filhos, trabalhadores braçais e pessoas que, está na cara, têm dramas e vidas muito mais fodidas do que a nossa ou, pior, uma vida parecida com a que tínhamos. E se o choro insiste em chegar acima da garganta, nos sentimos culpados. Não é aquela mea-culpa de classe média recém-ascendida que dá esmola aos pobres; é uma culpa interna, dolorida, da certeza que um dia a vida já foi pior, você superou e, agora, pra quê? Pra quê? Pra quê chorar?  Não tem nada a ver com parecer “fraco” ou “forte”, isso nunca esteve em pauta; chorar, para os engolidores de choro, tem a ver com a capacidade de enxergar ou não a conjuntura que estamos inseridos. Mas é claro que não somos um monstro de ferro, uma versão ambulante de um rochedo do norte. E é por isso que, na maior parte das vezes, choramos sem motivos, sem ninguém ver, trancados em algum lugar. Porque se não há razão específica, não há termos de comparação, é como se fosse um choro de conjuntura, por tudo, mas que ninguém pode ver. Acontece raras vezes, afinal só acontece quando pessoas fortes (ou nem tanto) chegam no limite. Talvez por tudo ou por nada, porque aí tudo bem, sem drama.

SP, presente.

Ele não tem a gentileza sempre lista dos mineiros, nem a extroversão e camaradagem aparente do carioca, dificilmente vai tirar uma palavra carinhosa do bolso só para te agradar, tampouco vai se preocupar com as idiossincrasias da sua estúpida vida cotidiana, porque a rotina dele também acorda heavy metal e dorme punk rock. Não adianta reclamar do calor infernal dos últimos milhares de anos, porque ele já leu essa matéria quando acordou, pegou 23 ônibus, 127 trens, 225 metrôs, gastou os últimos 20 reais da carteira para pagar o táxi que correu no caminho para não chegar atrasado no trabalho e, claro, caramba, ele SABE que está calor. Não existe espaço para obviedade no universo paulistano. Pelo menos não para as mais recorrentes. Te digo também que não adianta reclamar do seu drama queen, porque ele conhece infinitos casos piores de gente que se deu mal, sacodiu a poeira e não ficou de chorume; isso quando não for a sua própria história de vida. Paulistano é tipo caranguejo que anda pra frente. Ele vai. Não se sabe exatamente onde, nem como e o quando é sempre agora. Sem volta. Te soa bruto? Não é. A cidade tem uma energia um pouco incrível. Basta por o pé na rua e você é tomado por ela. Pela pressa, pela vida, pela vontade de fazer. Espremida em um trem, calor desumano, sem chuva há quase uma semana, jornada violenta de trabalho, ninguém para de fazer planos. Pense na vida enquanto sobe a escada rolante, mas mantenha-se à direita. Existe organização no caos. Até para os seus 15 segundos de delírio ou de desabafo íntimo, você vai ter que lidar com o outro. Paulistano é sempre o outro. Em uma metrópole que recebe pessoas de vários lugares, aquele com quem você interage sempre vai ter algo a te ensinar sobre a cidade. Mesmo que não se defina paulistano. E então quando você menos espera, está ensinando até seu amigo viaduto-do-cháense qual a saída correta do Anhangabaú. E o sentido exato do trem. Não faz diferença se você nasceu ou não aqui, isso é absolutamente irrelevante neste lugar. O lance é a relação que você cria com São Paulo. Se você é capaz de amar isso aqui, é paulistano. Porque não é fácil amar alguém com tantos defeitos. Mas o dia que você entender o valor de uma presença que pode custar 23 ônibus, 127 trens, 225 metrôs mais a corrida pelo táxi por causa do atraso ou alguns quarteirões a pé segurando a mochila na frente... para encontrar um amigo, ver um parente, tomar uma cerveja ou, simplesmente, voltar para casa, você começa a entender o que realmente é intenso e fascinante na capital paulista.