segunda-feira, 14 de abril de 2014

Sobre “Um porto seguro para Elizabeth Bishop” e outras coisas.

Não se engane pelo livro pequeno, tem muita coisa lá dentro que você vai pensar “como ela disse isso assim, tão de sopetão?”. A autora reúne boa parte das angústias das mulheres escritoras. Com o adendo de ser homossexual. Separei uma: fraude. 
Ela tem um medo incrível de se revelar uma fraude (até para si), mesmo depois de ganhar um Pulitzer (o que, para mim, é irrelevante). Mas ela resume bem: neste país (no caso, o Brasil) era impossível que descobrissem isso, se caso fosse. Pelo menos não com a influência que ela tinha... ou que a companheira dela, Lota Macedo Soares, tinha. Mulher influente no governo Carlos Lacerda. As duas foram o que hoje poderia se chamar de casadas. Moraram anos no meio do mato de Samambaia, perto de Petrópolis, num sítio, casa, coisa parecida. Daí que, de lá, no meio do nada, no fervor dos anos 60, com o mundo em reviravolta, ela escreve poemas olhando para os passarinhos e ganha o Pulitzer. Fica sabendo do prêmio por telefone. Aí, ela vai para o Rio e, quando faz referência ao golpe de 64, chama de revolução. Desconfortável, no mínimo. Mas, ao longo do texto, tem vários poemas dela. São bons, não conhecia essa poeta americana.
E então que Bishop me lembrou outra artista, cujo nome não vou me recordar, mas estava em exposição naquele museu bonitão de Niterói, desenhado pelo Niemeyer, que visitei no carnaval. Lembro que li um pouco da história dessa tal artista plástica sem nome. Sou do tipo que lê as legendas, os avisos e tenho uma fissura por linhas do tempo. E ela também me trouxe desconforto. O pico da sua obra, segundo a curadoria, se deu nos anos mais duros do regime militar no Brasil. Sem fazer referência alguma a isso. Eram abstrações mais ou menos genéricas, traços coloridos e traziam a incômoda sensação (pelo menos pra mim) de que nada acontecia feijoada no país. Bom, eu digo incômoda agora para quem sabe o que acontecia. Estava claro que não havia ironia na obra. Pelo contrário, ela parecia ter sido muito bem ajudada pela “elite financeira-intelectual” da época. Estudou fora, teve tempo de montar ateliê no Rio, em São Paulo sem nem menção a exílio, resistência, censura ou coisa parecida. Daí que brochei. A obra me parecia vazia, tipo um Romero Britto vintage.
O que Bishop e essa tal artista me encafifaram foi com o fato de terem sido reconhecidas enquanto artistas “em seu tempo” estando completamente alheias a ele. Portanto, de alguma forma, é possível fazer arte assim. Ou a única arte possível é aquela intrinsecamente ligada à transformação e/ou crítica da realidade? Bishop não era totalmente alheia, fez vários poemas sobre o cotidiano carioca, observações agudas sobre o país, mas não necessariamente comprometida ou, talvez até, descomprometida... e daí surja algum traço de relevância em sua obra – diferentemente da tal (para mim odiosa agora) artista do museu de Niterói. Particularmente, confiro mais crédito às obras que tenham comprometimento, que não se descolem da realidade, que cumpram o verdadeiro sentido da arte de aproximar o homem de si mesmo. É claro que, da minha parte, existe um viés político bastante claro. Eu tenho lado. E já me peguei pensando se uma “arte fascista” (leia-se a arte desenvolvida nos anos de fascismo, permitida, não a oficial) pode ser considerada arte. Questões antigas, do tempo de faculdade e mais um pouco, que ainda me inquietam. E só piora. Walter Benjamin me entende.
De volta a Bishop, apesar do desconforto, ela é leitura obrigatória. Se me fez chegar até aqui com tantas indagações, tem seu mérito de livro de leitura instantânea. Para não ser injusta, existem trechos feministas sobre ser lésbica nos anos 60, 70, 80, século 21 com uma passagem genial.