sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Crônicas do Rio de Janeiro, de Roberto Arlt.

Quando li a contra-capa, decidi ler por despeito. Imagina: um argentino, portenho, jornalista, vem pro Rio, nos anos 30, e se propõe a escrever crítica e causticamente sobre a terrinha. Para piorar, é a primeira vez que o camarada sai de sua República  da qual tanto se vangloria e cai em um país que aboliu a escravatura há poucas décadas. E ainda, me atesta o editor, essas crônicas reunidas são inéditas, portanto tal narrativa ainda não tinha sido apresentada até então.
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Em tempo, já tinha definido ler algo do Arlt por indicação do Cortazar, em "Clases de Literatura" e por um interesse geral-futuro-imaginário de me aprofundar em contos latino-americanos, mas isso é outro papo.

Esperava o fim dos tempos.
Cóleras de raiva.
E não aconteceu.

Nas crônicas, é fácil distinguir as críticas de caráter coletivo e social mais profundas daquelas de escolhas, gostos e hábitos pessoais -- como optar por não visitar museus , não se interessar por "construções coloniais" e dissertar horas sobre o calor impiedoso da antiga capital do Império.

Bueno.
Arlt faz a curva de aprendizagem da sociedade brasileira típica do estrangeiro: se enternece com a amabilidade e a sociabilidade dos nativos; impressiona-se como as crianças são bem-educadas, como as mulheres andam na rua (segundo ele, mais "livres" e menos "oprimidas" que as portenhas), como os negros são "integrados" ao convívio, até captar as matizes perversas e cruéis tão caras ao país.

Racismo.
A primeira nuance é sutil como um elefante na cristaleira: o tempo de permanência nos cafés. Como bom portenho, o autor frequenta esses lugares e nota que alguns podem ficar mais tempo do que outros. Negros entram, tomam café e, se demoram, são retirados. Arlt escreve não com um olhar crítico e piedoso sobre o racismo, pelo contrário, ele mesmo é racista extremado, não do tipo que reivindica o preconceito, mas do tipo que externaliza, sem meias palavras. Não é um racismo à brasileira: velado, tímido e lancinante; é declarado e ponto.

Grone.
Esse termo me custou uma rápida pesquisa que o tradutor do celular não resolveu. É uma expressão pejorativa, típica dos portenhos, oriunda de um hábito de trocar as sílabas (ne-gro >> gro-ne) para dizer sem dizer. Mesmo, digamos, com toda essa convicção e elaboração sobre a inferioridade de outra raça, Arlt se viu assombrado e exasperado quando descobriu, já na última semana de viagem, que o Brasil tinha abolido a escravidão há apenas 42 anos.
"Então quer dizer que aquela velha negra...? / Sim, ela foi escrava / Aquele senhor negro que tece redes para vender tamb.../ Sim, ele também/ Aquele senhor distinto, bem-afeitado dirigindo um carro/ Sim, era dono de escravo".
Choque.
O argentino também se horrorizou com a diferença nada sutil entre "castigar" e "maltratar"; os valores de cada mercadoria; o papel dos feitores e essas idiossincrasias tão conhecidas em nossos livros de História. Sim, ele, racista declarado, chocou-se. Durmam com essa.

Particularmente, Arlt pode até ser um grande escritor e cronista, com prêmios e tudo mais, mas não passa de um jornalista medroso e medíocre. Ele chega a aventar uma entrevista, um bate-papo qualquer, com um desses negros anciãos espalhados pelas ruas. Mas por medo ou preconceito ou ambos, não o faz: "acha melhor não". Simplesmente.

Ócio e labuta.
A crítica mais contumaz e eloquente é sobre o nível cultural da classe trabalhadora. Arlt espanta-se que existam apenas três teatros para dois milhões de pessoas. Não há bibliotecas operárias, coletivos culturais de trabalhadores e outras agremiações que permitam o entretenimento e o enriquecimento espiritual da classe. Ele mesmo aprendeu que aqui vive-se para ganhar "el feyon" e o resultado é uma cidade linda, porém tediosa, com uma classe média limitada e uma polícia extremamente opressora.
85 anos depois, de minha parte, só tendo a rever o tédio.

Yungar
Outro termo que me custou mais pesquisa, porque o tradutor não resolveu. Arlt o usa para todos: mulheres, negros (ainda mais os negros), jornalistas e afins. Encontrei a referência do termo em inglês "slog away": algo como trabalhar muito durante muito tempo. Livre tradução: ralar pacas.

Mulheres.
Creiam ou não, Arlt não sai exaltando as "belezas naturais da mulher brasileira". Ao falar sobre o tema, diz que aqui as mulheres são até "mais livres" que as portenhas: andam à noite pelas ruas, não sofrem tanta "abordagem" e parece, segundo ele, que não tem tanta resignação com seu lugar na sociedade. Até entendo, por certa experiência própria no século seguinte.
O machismo dos latinos, assim como o racismo dos portenhos, é muito mais explícito, mas não menos cruel. Como não há um interesse específico, Arlt não capta nuances, apenas destila frases e concepções machistas clássicas sobre mulheres decentes e não decentes e voi lá.

Por fim, não há um argentino recalcado falando mal do Brasil. Há um estrangeiro muito capaz que capta impressões de um país que mudou muito e pouco ao longo dos séculos. Outras notas mais gerais, como já disse, são de interesses mais pessoais e características peculiares.

Há passagens divertidas, inclusive sobre uma entrevista que ele concede a um jornal brasileiro e, quando lê a matéria, vê uma aspas não dita por ele com um enaltecimento de Castro Alves. Ele se indigna: "Eu sei lá quem é Castro Alves, não me interessa saber, como podem dizer que eu disse isto?".
Pois é, Arlt, bem-vindo.